sexta-feira, 30 de novembro de 2007

A promessa do Olival (continuação)



Começámos a ouvir o F.M.I. num maxi-single que tinha escrito na face, proibida a audição pública, o que fazia daquele acto um momento ainda mais rebelde e único. E lá começa o Zé Mário Branco a rodar no vinil , já só me lembro de algumas frases desgarradas, recordo-me que tudo começava por uma brincadeira, por umas asneiradas em ritmo de pop chula, que ía crescendo de intensidade, até ao momento dramático do choro, da raiva da angústia máxima, da explosão com qua acabava a primeira parte do disco. Pausa para virar o vinil no prato e depois o discurso calmo, compassado, a flauta redentora, o assumir-se, a música do ser solidário.




Ficámos em silêncio durante um bom par de minutos. Saímos de casa, subimos de novo ao Tó, e só quando nos sentámos na relva a alargartar é que o Ringo Star disse aquela frase que adoptámos como se fosse a única verdade possível para os nossos vinte anos abertos:




- Esta merda devia ser ensinada nas escolas!




Aquela frase nunca a esqueci. Muitos anos mais tarde vejo-me a dar aulas numa escola profissional, a animadores sócio culturais, no Monte da Caparica. Um dia estava eu a preparar uma das últimas aulas do ano e para mim - eu já sabia que ía deixar a escola porque tinha sido convidado para um outro lugar- uma das últimas aulas que iria dar naquela escola, quando me bateu aquela frase, aquela máxima, assinada no sangue do entusiasmo por todos os participantes naquela audição pública do FMI e sabia, eu iria ter de mostrar aquele disco aos meus alunos. Um gajo é quase nada senão cumprir algumas das bocas que atirou para o ar na adolescência.




Foi a medo confesso. Tratava-se de miúdos dos seus dezasseis, dezassete anos, com vidas tisnadas e batidas pelo sol ali da Trafaria e do Monte da Caparica mas mesmo assim miúdos, que não sabiam nada sobre o que se tinha passado à vinte e poucos anos. Mas eu tinha de ser fiel à minha promessa de juventude no Olival, afinal eu sempre achei que aquela merda devia ser ensinada nas escolas.




Encontrei aquele que me pareceu o melhor enquadramento para a ocasião: o FMI falava da história de desencanto de um homem que se tinha entregue de alma e coração ao processo de desenvolvimento cultural e político que tinha marcado o período revolucionário e este tinha sido uma das alturas em que o movimento da animação sócio cultural teve uma grande implosão discursiva, tanto no campo da teoria como das práticas. Disse-lhes também que não ligassem para alguns aspectos que já estivessem desactualizados. E expliquei-lhes também a promessa do Olival.




Coloco o cd, uma versão actualizada, já não o vinil que obrigava a uma paragem e começam a ouvir-se os primeiros acordes do FMI. As asneiras, o palavrões. Eles riem-se nervosos. Estamos sentados em circulo. Aproveitam os períodos de troça de Zé Mário para se libertarem do nervoso. O disco avança e percebe-se o aumento de intensidade dramática. Quando ele começa a gritar e depois a chorar ouve-se o ruído da respiração de cada um deles. Olham-se entre o medo e a alegria de uma aventura. E depois vem a calma, a tranquilidade, o silêncio, a música da flauta, a alusão aos bombos, ao rio de S. Pedro de Moel, ao grito surdo e cavo, de quem é o carvalhal? é nosso!.




Acabou a audição. Há logo uma voz que se levanta para se sossegar a si mesma:


- Isto já não tem nada a ver com hoje...


Ao lado não o deixam acabar:


- A bica não está a quinze tostões e o pastel de nata a sete e coroa mas de resto é igual...- diz uma fazendo alusão a um dos versos do FMI.


E lá continuam a discutir. A aposta tinha sido ganha. No final da aula uma das raparigas vem ter comigo:


- Este cantor já morreu, não morreu?


- Não, está bem vivo. Porque dizes isso?


- Tenho sempre a impressão de que o que é bom já acabou.


E dois dias depois há uma outra que me traz uma foto. Era do pai, no quarto, com um poster do Che, e ele a fumar, há uma guitarra em cima da cama.


- Eu nunca soube o que é que o meu pai estava a ouvir. Agora já sei que era esta música.


Nem a desmenti explicando-lhe que este espectáculo só tinha surgido nos anos 80 e que provavelmente aquela foto era anterior. O que é que interessava?! Por vezes a ficção é mais intensa que o real e ali estava uma filha a querer identificar-se com o seu pai. E isso era tão real que feria os sentidos. Não acabou por ali. Um dia, já trabalhava neste velho teatro, recebo um convite para um espectáculo de dança no CCB de uma coreógrafa e bailarina que desconhecia. No elenco estava uma actriz que tinha sido minha aluna, por acaso aquela que defendera mais veementemente a actualidade daquela obra de José Mário Branco.Tinha sido ela que me mandara o convite e tinha lá escrito, não podes faltar. A certa altura do solo começam a ouvir-se excertos do FMI. No camarim, depois do espectáculo, a minha antiga aluna veio ter comigo toda contente:


- Percebeste porque é que era importante que viesses?

Regressar a este post na Olivesaria.