segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

O dia do Senhor Cozinheiro (continuação)



Nós, eu e os meus dois irmãos, detestávamos os domingos. Eram um pesadelo. A quantidade de louça que o meu pai sujava e que , conforme a escala, lá tínhamos que lavar. O meu pai ía de manhã ao mercado comprar peixe ou carne, hortaliças, legumes, o que calhasse para aquele ritual dominical que o tornava num minhoto um pouco mais feliz, neste deserto que a cidade pode ser para quem se baptizou na urze, na esteva, no pó dos caminhos; com que ele se lembrava que era da terra do mestre Silva e que tinham sido colegas de escola. No mercado negro da escala das tarefas lá de casa o domingo era um dia que valia - para além da troca com um dia normal da semana - dois ou três números da Verbo & Saber pequena, ou um de "O Mundo em que Vivemos", dos grandes, para além de cigarros, ou alguma daquelas quinquilharias que cobiçávamos entre irmãos. Apago as luzes, deixo apenas ficar acesa a do forno. Acendo um cigarro imaginário que tem quase a minha idade. O meu pai cozinhava com o cigarro ao centro da boca com a cinza num equilibrio mais dificil que a Torre de Pisa. Era sempre assim mas naquele espaço de quatro por quatro da cozinha lá de casa a minha mãe deixava-o solto, sem rédea. Ali era rei e senhor. Olho para dentro do forno e sinto uma enorme, incontrolável ternura. Eu nunca lhe confessei - e nunca lhe disse porque só agora é que me apercebo disso com essa clareza indesmentível - que tive vergonha dele. Durante algum tempo, quando viémos para Lisboa, fui substituindo o orgulho que tinha nele - lembro-me de, na Damião de Góis, quando me perguntaram qual era a profissão dele, ter escrito filósofo, porque não?, se os que tinham os pais licenciados em biologia escreviam biólogos, porque é que o meu pai que se tinha licenciado em filosofia não deveria ser filósofo? - por uma certa vergonha. Eu gostava dos pais modernos dos meus amigos e ía, a pouco e pouco, envergonhando-me do meu pai que, por ter sido padre, atrasara a sua vida. Os meus primeiros anos na cidade foram destruindo o capital de admiração que o meu pai acumulara em mim. E que era muito, enorme. O meu pai foi a minha árvore, a sombra fresca onde cresci sem sobressaltos de maior, o mestre onde aprendi as lições fundamentais. Não sei explicar este desacato da minha adolescência de outra maneira: é de espíritos insensatos esperar o reconhecimento e o sentimento de justiça por parte de um adolescente. Deles devemos e podemos desejar receber quase tudo, menos essas duas qualidades de espírito, que devemos guardar para as mentes calejadas pela têmpera do tempo. Na galeria dos pais da cidade João Belo ele era dos mais antigos e - por ter alma de campo e andar com a sua terra enraizada na alma - nunca se entusiasmou por ter uma casita de férias ou por ir a banhos para o Algarve. Praia para ele era deixar-nos ir para o areal e ir comprar isco para estar uma tarde inteira a lançar a cana ao mar. Durou pouco tempo esta vergonha, durou o pouco tempo que a adolescência média leva a passar. Ela parece uma história interminável quando a vivemos mas (felizmente) dura pouco tempo. A luz amarelecida do forno devolve-me a imagem do salmão já um pouco tostado. Abro a tampa e vem um cheiro a orégãos, tomate, cebola e azeite que me destapam os sentidos e eu volto à terra. Catrapisco o rio que se deita na janela da cozinha e delicio-me com o sabor destes momentos em que me reencontro com o meu pai. No dia em que o meu filho nasceu telefonei, desesperado, a um bom amigo, psicólogo, perguntei-lhe, Manel, e agora, como é que faço para ser um bom pai?! e ele, também pai, disse-me, é o teu filho que te vai ensinar a ser pai. É verdade, tem sido verdade ao longo destes quase sete anos. E agora, enquanto o travo do peixe assado se pavoneia diante das minhas narinas, descubro que também têm sido estas longas conversas que tenho com o senhor cozinheiro de domingo, que, ao longo destes anos todos, me têm ajudado a tentar ser melhor filho, melhor pai, melhor pessoa.






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