Chamo-lhe período catió porque nesse período vingavam as festas nas caves dos prédios da Catió. Eu gostava daquelas festas. Elas permitiam-me sentir-me moderno dançando desde os passinhos betosos do saturday night fever, numa primeira fase, até ao gingar de um guitarrista em pleno extâse, como se da extremidade dos meus dedos estivessem a sair os verdadeiros acordes. Adorava a música de circo dos madness, vibrava com os pink floyd, principalmente the wall, esse hino à nossa juventude recalcitrante, I will survive da Glória Gaynor, Blondie, One Way, de Ian Dury, Sex, and Drugs and Rock and Roll, Ramones, muito Zappa, Genesis, Police, Duran Duran, Mike Olfield, uma caldeirada musical misturada com cerveja de litro comprada ali no Brisa do Tejo e partilhada irmamente na relva das traseiras da Catió. Elas permitiam-me dançar, estar simultaneamente em grupo e sozinho, fazer parte e ser estranho, eram o acordo quase perfeito. Quase perfeito por que no meu imaginário não havia raparigas, tipas, gajas, não vou cometer a desfaçatez de chamar mulheres às raparigas que eu transformava nos meus hologramas de fantasia. Por isso, na altura dos slows, escapava-me para o banco em frente à rampa, ía ouvir os mesmos cromos de sempre a discutirem as jogadas mestras do campeonato. Isto era assim quase todos os fins de semana. Tanto que, por causa do prestígio que estas festas já tinham (em grande parte porque muitas das raparigas da Catió eram lindas), eu comecei a ser encarado por outros amigos, como um VIP, um bon vivant, daqueles a quem se devem convidar para as festas. Eu dizia que não, claro, eu era muito fiel às minhas festas da Catió, mas houve uma noite em que um amigo me conseguiu transladar para umas festas nas caves dos prédios da Almada Negreiros. Lá fui eu e, em terra estranha, aos meus costumes da Catió disse nada. Eu era uma espécie de vedeta contratada, não ía cantar, não ía dar autógrafos, mas ía, naquelas paragens, representar o espírito catió. Vou dançar um slow, dois, a estratégia era: a gente besuntava-se de perfume aramis ou paco rabanne e depois, cheios de confiança, começávamos a apertar um bocadinho muito cada vez mais. Não me peçam mais explicações ou pormenores, era assim que se fazia e a coisa funcionava. Como era gradual a rapariga, se se sentia muito pressionada ou se não estava para aí virada, podia ir rechassando o ataque e, do outro lado, para bom entendedor, uma mão travando o braço bastava. E como era tudo feito no escuro ninguém ficava envergonhado, os egos luzídios e a auto-estima lustrada asseguravam um desenvolvimento harmonioso da líbido adolescente. É claro que por vezes os mais ressabiados íam juntar-se ao banco dos contritos ou aflitos da bola e xingavam de alto a baixo aquela que lhe tinha dado nega, mas eram casos tão raros porque provocavam mais chacota do que prestígio para o mau perdedor. Nunca fui desses. Fazia a coisa pela calada, ter três irmãos lá em casa desenvolveu-me algum traquejo na arte da dissimulação, era a luta pela sobrevivência, se ela me dava uma tampa ou uma nega fazia um sorriso vencedor e saía por cima. Mas nesta festa tudo me estava a correr bem. O que dava jeito. É mau um tipo ir todo estilhaçante (com estilhaços de estilo, está-se a ver) e depois começar a apanhar com tampas umas atrás das outras. Eu já ía na quarta dança com a mesma rapariga e de avanço em avanço já tinhamos até começado a conversar. Quanto ao resto, não me perguntem, já disse. Ainda hoje estou para tentar perceber como é que naquela altura funcionava essa coisa do encosto, do aperto. Tesão? Não me parece! Não éramos tão tolos que nos sujeitássemos a levar uma bofetada diante da protuberância dos nossos genitais junto dos do nosso par. E além do mais éramos putos, um bocado parvos, bebíamos umas cervejolas e dizíamos frases feitas mas, a bem ou a mal, tinhamos alguma delicadeza interior. A coisa passava-se através de trocas de energia, de calor, e mais do que isso, o que eu acho que havia era uma verdadeira troca simbólica. Nós imaginávamos que estávamos num filme enquanto dançávamos, cada vez mais perto, cada vez mais confiantes e enquanto rodopiávamos aproximávamo-nos de uma imagem dos nossos melhores ídolos. Abraçávamos, aquentávamo-nos, beijávamo-nos como eles faziam e depois, nesse pequeno vaivém em que o mundo onde estávamos coincidia exactamente com a imagem que tinhamos dentro da cabeça, éramos soberbamente felizes. É por isso que há tanta gente a escrever livros dizendo que aquilo que, na treva humana, nos distingue, é a qualidade dos nossos ícones, dos nossos ídolos, dos nossos simbolos. Assim eu estava. Naquele dia, numa festa estranha - mesmo que a duzentos metros daquelas onde eu era o mais atado dos moços - senti-me o meu pequeno herói e avançei. A certa altura, estava tenso, lembro-me, olhava todos os lados da cave a ver se alguém se estava a rir de mim, não estava, ninguém se ria de mim, o caleidoscópio rodopiava no tecto, os pedaços de luz davam áquela noite uma atmosfera mágica, não sei porquê viro a cara para o lado, o meu par - tinha nome de anjo vim a saber depois - estava com a boca aberta, achei estranho, nunca me tinha acontecido, tapei-a com a minha boca, que sensação esquisita, o Marlon Brando, o Clark Gable nunca terão beijado assim, eu imaginava que os beijos deles saberiam a morango, a ananás, quanto muito a mousse de chocolate, não me parecia saber a nada aquela boca, aquela língua, um beijo é isto, meu deus?, por essa altura já a sala toda me olhava, aquele instinto de actor que nasce no mais tímido dos mortais agigantou-me, fiz de conta que estava a delirar com aquilo, vamos lá para fora, disse, fazia parte do ritual do engate, três, quatro, cinco, as voltas que forem preciso, depois um beijo, e finalmente o sair da sala para um momento de maior intimidade. O que eu fui fazer?! Ía estar sózinho com uma rapariga, ainda por cima depois de a ter beijado. E de não saber que raio era aquilo que me tinha acontecido. Só me sentia lambuzado, mais nada. Não sei quem é que inventou o romantismo do primeiro beijo. Eu passava bem sem ele. Sabia a vazio, a saliva, a cuspo. A nada. E depois, o terrível que foi a solidão à entrada do prédio. Eu abraçava-a para não lhe ver os olhos, para não me aterrorizar. E dizia aquelas coisas horríveis, que bem se está aqui!, quando era exactamente o contrário que eu sentia. E que só me faziam sentir ainda mais ridiculo. Queria desaparecer. A certa altura fui salvo pelo síndrome da gata borralheira. O pai tinha-lhe posto limites de hora e ela tinha de voltar. Fui levá-la a casa. Talvez lhe tenha dado a mão mas eu já não estava com ela. Na minha cabeça já redigia posts mentais para contar aos meus amigos a façanha. Foi o momento mais glorioso da noite. A coisa tinha sido tão intensa que eu no dia seguinte já nem me lembrava da cara dela. E tinhamo-nos combinado encontrar por volta da uma. Sabia que tinha franja. Ainda me estou a ver. Encostado à parede do pavilhão dos Viveiros na entrada de cima, cada vez que via uma moça de franja avançava com um leve sorriso, olhava e, se não fosse reconhecido, caminhava até ao portão refazendo novamente o percurso. Fiz isso várias vezes. Felizmente ela tinha mais boa memória. Ou tinha-me visto melhor, debaixo do candeeiro onde eu lhe tinha dito a maior colecção de frases pires de que me lembro. Sorriu para mim logo que me viu. Eu avancei para ela. Tinha o discurso preparado. Foi o namoro mais curto da história, durou uns quinze minutos. Expliquei-lhe que queria ser livre, que a liberdade, que queria ser livre e com liberdade, que queria ser livre, a liberdade - imaginem o Ricardo Araújo Pereira a fazer de Paulo Bento, substituam liberdade por tranquilidade e têm a figura que este vosso santo fez - e que por isso, embora tivesse sido muito bom, que nunca mais me iria esquecer daquela noite - e acertei, vistes?!- não podia andar com ela por causa da liberdade, essa malandra, ser livre, entendes? Ela olhou para mim entre o desiludida e o divertida, que não compreendia nada do que eu estava a dizer, nem eu, mas não lhe disse, mantive-me em grande união espiritual comigo mesmo, mas lá deve ter pensado com os seus botões, o tipo não sabe beijar, abraça-me como se me quisesse partir enquanto me diz frases esquisitas, que se lixe. E assim foi, sem tirar nem pôr, a história do meu primeiro beijo.