"Epílogo
(Acende-se a luz de NO AR na cabine de rádio)
ANIMADOR
DE RÁDIO Na Noite em Branco continuamos a tratar os sonhos por tu. Amanhã, hoje e ontem. O velho dos esticolicas emudeceu.
Cortaram-lhe a voz. E o bairro? Sobreviverá ao catrapila? Alfredo, 43 anos, vendedor imobiliário. Dá um retoque no cabelo, agita o gel que o segura, sai para a rua esfregando as mãos de contente. Na noite do nosso descontentamento, Alfredo, que também tem direito à vida, esfrega as mãos de contente.
Os descontentes também vivem de dia. Nem são crónicos nem profissionais sofredores. Sofrem agora e sofrem porque sim. Porque as casas, os bairros não morrendo, matam-se. De contentamento e gel, brilhantina q.b. . Quanto baste, Alfredo!
Onde é que tu estás, Alfredo?
Há uns anos atrás o poeta completou a poesia com um apelo: “Falemos de casas”, escreveu. Na Noite em Branco não temos por hábito fazer ouvidos moucos aos poetas . Falemos então de casas. De casas já que de Alfredos estamos conversados.
As casas habitam-se. Com resguardo soalheiro ou batidas pela chuva, as casas vivem-se, uma a uma, no seu abrigo ou incomodidade. Quando mais do que uma se reunem em seu nome chamamo-las de bairro. Os bairros são assim casas que responderam ao apelo do poeta.
Assim também o sangue que escorre da minha mão é vermelho, não importa a cor. E se parar, não foi apenas ele que estacou. Tal e qual as casas, o sangue circula por entre os espaços possíveis . As artérias. Quando morre um homem como o Ai-Ai não morrem as casas . São elas que nos contam a história. Os bairros até quase que sobrevivem ao degredo e à tortura.
Não vos posso explicar porque é que a morte virá quando este líquido viscoso e incerto mandar parar o passo de vagabundo com que tropeço na noite. Também as casas e os bairros não sabem explicar porque é que o bairro esticolica vem vestido para matar. O único animal que tem resposta para tudo está muito ocupado a esfregar as mãos de contente.
Não é Alfredo?
O homem no rap vem a caminho. E já que falamos de casas escutemos mais um pouco esse rumorejar que atravessa a rua. Boa-Noite, Ouvintes de mais uma Noite em Branco.(põe um disco . A bateria ilumina-se. O homem do rap chegou a tempo de cantar)
HOMEM DO RAP
Digo 98 mil nove,é prós putos que não querem comer a sopa, sopa, sopa,Mil Nove Noventa e Oito, incha, incha e rebenta, mas rebenta de tédio e vazio, está a ficar frio, ou será suor, um calafrio na espinal medula?
Digo 98 mil nove, sopa, sopa, sopa, Mil Nove Noventa e Oito é o bairro esticolica, estica e não encolhe, não há chuva que não molhe, os putos querem comer, não querem comer a sopa, Alfredo, os putos querem de querer. O que querem os putos, Alfredo?
Digo 98 mil nove, sopa, sopa, sopa, Mil e Nove e Noventa e Oito quer comer os putos, a sopa quer comer os putos, o prato está frio, vazio, o Alfredo vem aí com a sua voz de rapina, sinto um calafrio na espinal medula, será que não há nada que o Alfredo não engula?
Digo 98 mil nove, sopa, sopa, sopa, É para os putos que não querem comer a sopa, gritava de louco o rouco homem que morreu por dois tostões furados, será também mouco o bairro que vai emudecer por alguns milhões esburacados?
FIM"
In É para os Putos que não querem comer a Sopa.