quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Ecossistema Comunicacional (Continuação)

(Foi no princípio da década de noventa que, na actividade de formação em animação sócio cultural, comecei a explorar este conceito, o de ecoterritório para tentar organizar as ideias sobre as possibilidades de intervenção num determinado contexto comunitário. Associado a este, surgiu-me um outro, o de ecossistema comunicacional, que me permitia propor aos meus alunos a ideia de que o animador sócio cultural mais não era do que alguém que, munido dos seus conhecimentos técnico-cientificos e face a uma comunidade, que enquanto sistema de comunicação apresentava alguns problemas de funcionamento, iria trabalhar para tentar restaurar os elos e as ligações quebradas, potenciando, valorizando e implicando os diferentes elementos da comunidade. )

Esta ideia muito simples, e até, hoje, confrangedoramente redutora, permitiu-me no entanto superar uma atitude muito em voga na prática da animação sócio cultural, e que se caracterizava tanto por uma grande euforia dos seus aparatos técnico e cientificos (muito pouco disponíveis para se auto-descobrirem enquanto dispositivos ideológicos) como por um doce paternalismo, eivado do muito romantismo com que a acção cultural é, muitas vezes, entendida no conjunto das outras actividades humanas. Ancorava-me assim na metáfora de que o animador, que também é um poeta do meio, era essencialmente alguém afecto à engenharia da comunicação.
Quando nos anos 90 calhou que a minha actividade profissional me fizesse reencontrar como o bairro, levando-me a estudá-lo e a procurar compreendê-lo, colaborando no âmbito do projecto Olivais Vivo num levantamento dos espaços, das dinâmicas culturais do Bairro, já estavam em marcha os projectos para o Centro Cívico e Social. Tenho uma imagem algo difusa de muito do que me aconteceu nessa década (1) embora tenha presente o quanto tive de moderar o forte conflito interno entre o animador e formador e entre o habitante do bairro.
Enquanto habitante do bairro apetecia-me chamar a polícia. Sentia claramente que era um roubo ao nosso futuro. Tenho dois hábitos terríveis desde miúdo. Um o de pensar que o mundo também é meu. Não sei porquê, sou, dizem-me sujeito medianamente lúcido e nunca habitei o discurso meio esquizóide do eu e os outros. O eles, o caralho! Comigo sempre foi nós. Nós terra. Nós céu. Nós futuro. E o outro hábito, que felizmente já abandonei, era de sonhar que era o super-homem e que resolvia lá, entre sonhos, o que no real custava um pouco a digerir. Não vos vou contar em quantas noites de raiva e de fúria não deitei abaixo com o meu sopro as torres dos olivais, e queimei com o meu olhar raio x todos os cabrestos que governaram a sua vidinha à conta dos negócios com aquilo que devia ter sido entendido como um recurso que afectava a vida de todos nós.
E se enquanto oliveira enxertada de verde eu andava em estado furibundo, enquanto animador eu sabia que já estava tudo misturado. Bastava olhar para a cara das pessoas. O Centro Comercial ía mudar-nos a vida. Ia modernizar-nos. Isso era gente, muita gente. Gente que tinha os seus negócios, gente que podia fruir mais o bairro, gente que podia vir cá morar, gente que poderia ir a um cinema, a uma livraria sem ter de sair do bairro. Um animador que não tenha gente nos olhos, nas mãos e no pensamento, bem pode dispensar tudo o que os livros e a vida lhe ensinou. E depois do gigante ter entrado, pensar o bairro é com ele, com esse gigantesco pé de feijão que não se sabe bem onde pode ir dar. Não sou da ciência dos catrapilas, sejam mecânicos ou mentais. Por isso o centro comercial e residencial com uma volumetria excessiva, com uma grande muralha sem espaços de respiração e circulação entre a rua cidade de bissau e a rua cidade de bolama, está lá, é um dado a contar. Os Olivais Sul, para o mal e para o bem, já são, simultaneamente, um bairro com uma estrutura polinucleada e um organismo centralizado e centralizador.
Parece-me que a primeira coisa que temos de perceber é como é que aquele espaço trabalha o modo como nós vivemos. Por contraponto ao bairro em que muitos de nós crescemos. Como é que ele introduz dinâmicas que criando um outro bairro dentro do bairro tendem a ensurdecer este último. E também como é que este espaço pode trabalhar positivamente a sua integração no bairro. Eu creio que há dois tempos nessa possibilidade: a primeira é a de neutralizar os efeitos negativos que as dinâmicas do Centro Comercial introduzem na vida social e cultural do bairro. A segunda é a de conseguir tirar efeitos positivos da existência do Centro Comercial. Estes dois momentos correm lado a lado.
O bairro onde nós crescemos estava, como já se escreveu e anotou pelos documentos da época, descompensado no seu núcleo central, ocupado durante muito tempo com baldios e instalações provisórias. Não poderemos saber o que seria a nossa vida se esse centro estivesse construído de raíz. Mas podemos perceber dinâmicas que se criaram por causa disso. E para isso basta um pequeno acerto de memória: todos nós crescemos num bairro pluricentrado. Conseguimos identificar em cada núcleo do bairro a sua vida comercial, as suas escolas. E para além disso foram-se construindo outros movimentos regulares na vivência do bairro. Tinhamos a zona dos cafés, ao pé da igreja velha. Tinhamos a zona verde, de desporto, no Vale do Silêncio. Tinhamos uma zona comercial, no Largo do Ferrador. O posto de saúde, na zona dos Candeeiros. As várias sociedades recreativas, da qual a mais prestigiada era a SFUCO. Independentemente de algumas imperfeições que este retrato em movimento possa ter, todos nós temos a noção de que a vivência do bairro implicava o uso de várias zonas do bairro pelo que quotidianamente estávamos habituados a viver o bairro de uma forma descentralizada. Foram muitos anos assim. As nossas estruturas mentais habituaram-se a viver assim o bairro, valorizando sobremodo o espaço-rua (há outros factores, o clima, a predominância de pessoas vindas das zonas rurais, etc, bem sei), os corredores de acesso entre quarteirões, as grandes artérias que os agrupam.
Não é assim o bairro de hoje. Esta tendência da centralização, já vinha detrás. Vinha de sempre. Aliás, poderemos pensar que esta tendência para a centralização está na forma como toda a nossa sociedade está organizada e assim, as estruturas, os equipamentos, o território edificado, fazem repercurtir esse modo de nos organizarmos. Centralização, centralidade, centrismo, centrão, são conceitos com os quais já não conseguimos compreender a nossa vida de todos os dias e que de certa forma mimetizam até a forma como o nosso corpo biológico se organiza. Só que a ciência dos lugares mudou. Explora novas vertentes da ideia de centro, que parece ser indispensável à nossa estrutura cognitiva, presente na linguagem, no afecto, na economia, na política, na cultura, e é trabalhada também noutras dimensões, menos literais. De uma certa forma podemos pensar que a ideia de pluricentração mais não faz do que tentar acasalar dois conceitos, a centralização e a descentralização.
Quando eu hoje digo à minha mãe que vou aproveitar o fim de semana de pai para levar o meu filho ao bairro e pergunto se ela quer vir ter connosco, que vamos fazer um piquenique ao vale do Silêncio, ela responde-me de imediato que vamos ao centro, que ela pode deixar o carro no parque de estacionamento, e que depois lá em cima o pequenote se entretem com os macdonalds que lhe dão um prémio enquanto ela vai buscar uma dose a um restaurante e que depois comemos ali. Eu estremeço de felicidade diante de tanta épica, de tanto ar livre, de tanto progresso, principalmente quando vejo tantas famílias a fazer o mesmo e lá vou pensando no próximo post que escreverei sobre a minha nostalgia dos tempos antigos. Até me consigo contentar para o facto de o nosso Shopping ao menos abrir a careca para o céu. E apercebo-me que para a minha mãe os Olivais tem dois caminhos. Um para a igreja nova, mesmo atrás de sua casa. O outro para o Centro Comercial. Em dias de neto lá lhe consigo achar um terceiro: o caminho para a Quinta Pedagógica.
A minha mãe não é uma espécie rara e o modo como ela vive o bairro é um pouco o modo como as outras pessoas o vivem. Ao fim de semana quando estou no bairro passeio com o meu filho mostrando-lhe os meus caminhos, andando a pé. Vamos aos parques infantis. Têm poucas crianças. Os largos, as pracetas, estão desnudas. A ideia de que o parque residencial dentro do centro comercial vai trazer mais gente para viver no bairro surge em contramão com aquilo que são as tendências com que cada um de nós organiza as nossas vidas. Falando com os próprios lojistas até eles se queixam de que não é liquido que essas pessoas dêem ânimo à vida comercial do centro. Entram e saiem por um subterrâneo e abastecem-se noutras grandes superfícies. Entalado, enquanto grande superfície, entre um Colombo e principalmente um Vasco da Gama, o Centro Comercial já teve melhores expectativas de futuro.
Quando agora voltei a passar mais pelo bairro, e voltei a ele muito recentemente, houve uma coisa que me espantou e que eu não percebi. Os espaços ao ar livre, o mobiliário urbano, os parques infantis, estavam na mesma. Não havia traço de animação, de frequência, de dinamização dos mesmos. Nalguns até um sinal de desmazelo, de usura, de não requalificação, falta de manutenção. O que mais me espantou é que entre 90 e 92, quando acompanhei mais de perto o bairro, havia projectos e ideias para a animação do bairro. Respirava-se um clima de uma maior iniciativa. As pracetas e largos apareceram com mobiliário urbano, surgiram alguns parques infantis. O vale do silêncio foi dotado de equipamento desportivo. Para além das mudanças resultantes das novas vias de acesso e transporte, de carreiras dentro do bairro, Procurei um edital e lá estava, como presidente o nome do mesmo autarca que quando eu saí dos Olivais estava cheio de ideias, de projectos. Pensei cá para mim, o tipo cansou-se de ser presidente, é o que é. Mas depois percebi que não. A Junta de Freguesia só está a interpretar, reforçando-os pela negativa, os fluxos de população. Se as pessoas não frequentam o bairro de uma forma pluricentrada, porquê gastar recursos e meios e ideias que não vão ter nenhuma visibilidade política? Ou que poderiam ter um efeito politico negativo, já que face a uma quebra acentuada de vendas, os comerciantes poderíam reclamar que ainda por cima lhes estão a diminuir os poucos movimentos de população que têm.
Pode-se perguntar: mas no tempo em que nós crescemos no bairro havia essa tal de animação? O vale do silêncio estava cuidado? De que parques infantis é que falas, ó João Belo? Do lago de pedras, água suja e ranho no Largo do Ferrador? Dos baldios, das hortas? É claro que não. Os equipamentos desportivos que eram negociados em décadas pelos responsáveis das escolas e da autarquia desapareciam e eram vandalizados num ápice. Só que naquela altura a ciência dos espaços era ainda muito insuficiente e resumia-se a um pôr verde nos canteiros e um consequente "não pisar a relva". Hoje ir ao Vale do Silêncio, querer beber água num chafariz, ir ao campo de jogos, ver as várias estações de jogging, é perceber num instante a incúria e o desleixo a que aquele espaço está votado.
Ou seja: por um lado temos um bairro que cresceu pluricentrado. Por outro lado temos um organismo - dizem que é uma espécie de bairro - que tende, literalmente, a centralizar toda a vida do bairro. Esse organismo tende, naturalmente, a ser um olho de boi gigantesco que sonega todos os bilas à volta. Tudo isto é maximizado porque, por outro lado, se deixa de investir nos outros espaços.
O que é preciso começar a fazer é o óbvio: insistentemente criar formas de ligar o centro aos vários espaços, criando dinamismos que permitam aproveitar os recursos do bairro na sua implicação. Por exemplo: colocar os clubes desportivos a dinamizarem actividades desportivas no Vale do Silêncio. Danças de salão no Largo do Ferrador. Criando uma verdadeira zona de piqueniques no Vale. Um quiosque. Talvez uma esplanada de verão. Pedir aos músicos da SFUCO que toquem um dia por mês num largo diferente, desde o ferrador, ao largo das sete tetas, ao coreto dos Olivais Velhos, ao largo do Gordo, às pracetas da Gilauto, às próprias esplanadas do Centro Comercial etc. Incentivar as animações por parte dos grupos de teatro amador, dos clubes de teatro escolares ou dos alunos dos cursos de animação e teatro. Fazer sessões de cinema ao ar livre. Inscrever os Olivais na rota de espaços utilizados para apresentação de festivais com espectáculos ao ar livre (dança, teatro, música, cinema). Integrar alguns espaços livres na rede dos jardins virtuais. Fazer visitas pelo bairro, contanto a sua história, passando pelas várias instituições culturais, recreativas. Implicar alguns nomes bem conhecidos, artistas, na dinamização do bairro. Criar actividades lúdicas integrando as famílias. de tudo o que falei quase nada implica grandes recursos e quase tudo assenta na visibilidade para os habitantes do bairro das suas próprias dinâmicas. Fazer espectáculos de música sacra nas igrejas. Trabalhar o núcleo, a partir do núcleo. Criar anfiteatros em espaços ao ar livre. Convidar músicos para ensaiar na rua, artistas plásticos para virem pintar o bairro. Ou seja podemos até respirar de alívio por aquele centro comercial e residencial não ser também um centro cultural, permitindo-nos pensar noutros espaços que diversifiquem a vida cultural.Ocupar as ruas, com festa, poesia, respiração forte.

Viver o bairro em suma. E para isso desenvolver uma consciência crítica sobre o mesmo. Não é possível desenvolvê-la enquanto não se perceber o quanto o que ali está feito foi errado. Que se não foi um crime devia sê-lo. Não sei se todos nós queremos viver no presente. Eu por meu lado não me importo nada de conviver com gente que queira viver no passado. Ou no futuro. Mas sei que todos vivemos no presente e o presente dos Olivais é aquela grande muralha de betão. Mas não só. Os Olivais não são só isso. São o que ainda resta de um bairro que queria crescer de outra maneira. E continuo a pensar ( e a dizê-lo): acho que este espaço é um terreno fértil para que criemos uma consciência comum sobre o bairro que queremos ter. E repito por isso o desafio que já antes aqui tinha lançado.


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(1) Mas ainda me recordo que escrevi dois textos, um o "Tirem as mãos dos Olivais II", que já publiquei aqui e que na altura enviei para o Expresso e para o Público, e um outro, "Maior que as Amoreiras", utilizando uma crónica quinzenal que na altura tinha num jornal regional da zona de Loures, Sacavém, e onde manifestava a minha apreensão por ser dessa forma ("Maior que as Amoreiras!" com que no jornal dos Olivais se apresentava o projecto do Centro Cívico e Social, quando eu esperaria que a Junta fosse o garante de outras condições que não as do gigantismo. E também num texto de teatro que tinha escrito sobre o bairro acabei por introduzir versões cada vez mais críticas sobre o futuro do bairro.